domingo, 24 de junho de 2007

Aristóteles

Enquanto Platão busca a verdade em um mundo das idéias, Aristóteles a procura no mesmo plano do contato prático e perceptivo com a realidade

Franklin Leopoldo e Silva

Tal como seu mestre Platão, Aristóteles também pretende alcançar a inteligibilidade do mundo, isto é, estabelecer as condições de um conhecimento racional quealém das aparências ou do contato imediato com as coisas. Mas, diferentemente de Platão, Aristóteles não busca atingir esse objetivo por meio da separação entre aparências sensíveis e idéias inteligíveis, existências contingentes e essências absolutas; opta por um outro caminho que é o de tentar encontrar o que há de essencial e de inteligível no próprio âmbito da realidade que nos é dada. Podemos dizer, simplificando bastante, que Platão busca a verdade em um mundo transcendente (o mundo das idéias, distinto do mundo sensível) e Aristóteles a procura em uma ordem imanente ao mundo percebido, isto é, no mesmo plano em que desenvolvemos nosso contato prático e perceptivo com a realidade.

Essa diferença, decisivamente importante para entender os dois autores e as vertentes filosóficas a que dão origem, não nos deve fazer esquecer, no entanto, que ambos consideram que há uma nítida distinção entre o conhecimento sensível e o intelectual, e que o segundo é hierarquicamente superior ao primeiro. O que Aristóteles rejeita em Platão é a interpretação dessa diferença como separação e a conseqüente duplicação da realidade em dois mundos, o que faz do processo de conhecimento uma ascensão metódica do mundo sensível ao mundo inteligível e, no limite, o abandono dos conteúdos sensíveis em prol da intuição das formas inteligíveis.

Para Aristóteles, o conhecimento consiste em descobrir no sensível as condições de sua própria inteligibilidade. Pressupõe-se, então, que é possível passar de um primeiro contato com a multiplicidade contingente das coisas percebidas ao conhecimento intelectual da ordem e da estrutura, ou seja, é possível transformar a experiência imediata em compreensão teórica mediada por categorias e princípios que nos permitem saber não apenas que as coisas existem, mas também como e por que elas são tais como se apresentam aos nossos sentidos e ao nosso intelecto.

Dentre as condições ou requisitos de inteligibilidade destaca-se a causalidade: quando entendemos que a gênese e a estrutura de tudo que existe depende de causas, atingimos um patamar de ordem e de articulação em que todos os elementos das coisas tornam-se explicáveis. Entendemos que algo existe porque é feito de uma determinada matéria; que obedece a uma certa forma; que o fato de algo vir a existir depende de uma ação e de um agente e que se destina a alguma finalidade. Assim podemos articular a imensa variedade do real com a unidade intelectual de uma noção que nos permite compreender a pluralidade e a composição pela unidade e pela simplicidade. Da mesma maneira compreendemos que a variedade das qualidades que apreendemos nas coisas articula-se em torno da substância ou essência, o atributo principal que confere à multiplicidade qualitativa, em muitos aspectos acidental e passageira, a unidade de uma coisa, uma realidade dotada de permanência.

A visão dessa ordem é também o impulso para que procuremos seu princípio e sua razão de ser, o elemento primeiro que dá origem ao universo dos fenômenos e que deve ser entendido como Causa na acepção mais elevada, porque sua posição o coloca como absoluto, isto é, uma existência que deve ser pensada como independente de qualquer outra condição. Passando assim da Filosofia Natural à Filosofia Primeira realizamos o conhecimento no mais alto grau que o ser humano possa alcançar; realizamos o propósito implicado na Filosofia como amor ao saber ou como o desejo de saber que anima naturalmente, segundo Aristóteles, todo ser racional.

E por que nos deixamos levar por esse amor e esse desejo? Certamente não nos move qualquer motivação utilitária; a filosofia nada acrescenta à nossa prática natural, à nossa vida estritamente cotidiana. Aristóteles diz mesmo que a filosofia começa quando já estão estabelecidos os meios de satisfazer as necessidades imediatas. A questão é que, quando já temos tudo de que aparentemente necessitamos, um outro desejo nos assola, um outro objeto de amor; e a ele nos dirigimos não movidos por necessidades práticas, mas simplesmente pela admiração, um estado de ânimo que abre a nossa mente para investigar não aquilo de que precisamos, mas aquilo que admiramos e diante do que nos colocamos como que perplexos e tomados por um sentimento de ignorância infinitamente maior do que tudo que já sabemos. Trata-se de um espanto proveniente de que sentimos que tudo que sabemos é nada frente ao que há para saber.

A ignorância filosófica é, portanto, o fundamento da liberdade de saber; pois se trata de um conhecimento que procuramos movidos pela admiração, que é algo como uma espontaneidade gratuita quando comparado à necessidade, à urgência de saber aquilo de que precisamos para viver. Quando submetidos à necessidade, somos menos do que homens, somos escravos; quando movidos pela admiração, quase superamos a condição humana, pois nos colocamos na via de um saber divino: mesmo que não o alcancemos, diz Aristóteles, nossa dignidade está em buscá-lo.

Franklin Leopoldo e Silva é professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de Descartes – A metafísica da modernidade (Editora Moderna, 1994), Bérgson – Intuição e discurso filosófico (Loyola, 1994) e Ética e Literatura em Sartre (Unesp, 2004).

Um comentário:

Suely Monteiro disse...

Gostei muito do artigo. Ficarei grata se me permitir reproduziulo no meu blog.
Abracos
Suely



www.suelymonteiro.blogspot.com